3
viam-se incontáveis barracos apagados, espalhados pelo solo coletivo,
arremedos de casebres à maneira de palafitas (amanhecidas),
que permaneciam suspensos pela miséria secular,
flutuando inertes sobre valas de esgoto, elos de córregos nauseabundos,
borbulhantes de (do) cólera, banhando diuturnamente a (des) infância de crianças anêmicas,
reticentes à luz do sol, e distantes anos-luz da preocupação real de muitos.
4
houve a imprudência que quase cessou a jornada,
mas vozes ecoaram silenciosamente pelos prados concretos,
e a fumaça que sobreveio do cálice da termeridade,
irrompeu em algo simbólico, uma xícara de café improvável,
esboçada em gestos guturais, que germinaram na indignação
e constrangimento, pelo papel moeda ter que ser ofertado sob pressão.
5
a certa altura, um sono implacável subiu às têmporas,
a passos largos, seqüestrando a concentração
e provocando, por instantes infinitos, um coro de luzes,
tardiamente reluzindo sobre uma névoa espessa,
e atingindo o ápice do contato, em janelas entreabertas,
que deixavam à mostra o delírio de enxergar o rosto num espelho crepuscular.
6
houve o desmoronamento circunstancial, que retirou tetos e deixou vapores,
enquanto aumentava o ritmo de circundar canais, navegando silenciosamente
pelas águas turvas e geladas do mar de pedra da madrugada,
até que, no amparo da sensatez, pés descalços, em contato com o balanço esfuziante,
sorviam o sumo das areias das praias, aquietando-se no concerto de horas tranqüilas,
e afundando mariscos estilhaçados, encontrados entre objetos perdidos há tempos.
7
e de uma janela entreaberta era possível contemplar ruídos diferentes,
barulhos de animais na selva diminuta, à caça de presas,
e apitos de trens de carga, enferrujados pelas águas salgadas,
e vozes, e gritos, e buzinas pelas ruas, diante de ondas arrebentando nas praias,
como se as águas salinares, embrutecidas pelo lixo despejado,
fossem encobrir o lugar, até a muralha de árvores que mantinha-se firme.
8
não se ouvia machados e serras elétricas, apenas o adorno imprescindível
ao equilíbrio do meio ambiente, sem o qual, não haveria beleza natural,
pois os morros, mais altos que edifícios, ameaçavam ruir numa avalanche horrenda,
enterrando as tardes de bronze, em que plantas enroscavam-se nos tornozelos de mármore,
e, sob o sol, pássaros sem caule derretiam-se no calor corpóreo, como faíscas ao vento,
enquanto um formigueiro humano, longe da percepção, multiplicava-se a olhos nus.
9
e um cataclisma cedeu, exatamente no momento em que barras de ferro eram retorcidas,
e vários nós ásperos, desses que contêm o antídoto para o desespero da amnésia,
apertaram as nuvens grávidas de pingos sedentos, prestes a desembocarem,
o que ocorreu quando o mar regorgitou o óleo despejado por um cargueiro,
e caranguejos esbravejaram diante de marés de espuma, ávidos para respirarem,
já que estavam sufocados em redemoinhos dilatados por destroços e conservantes insípidos.
10
bicicletas enferrujadas, conduzidas por portuários madrugadores, consumiam avenidas,
devoravam anos e segundos, e desapareciam na aurora, levando a tempestade de delírios,
que podia ser contemplada do mirante sobre a montanha de ar, que, imaginariamente,
fazia acreditar que as ruas estreitas que desorientavam os caminhos, fossem dar numa ilha
espremida por corais incertos, quando, na verdade, levavam a uma bica centenária e a um
forte desprotegido, onde, no passado, foi quartel-general para soldados de papel.
11
e no quarto, as mãos entrelaçadas rompiam fronteiras e ramificavam-se pela geografia
do corpo feminino, ampliando os instantes contidos numa tarde chuvosa, e parecia
não haver nada que preocupasse, nada que corroesse ou fosse capaz de apagar
a sensação sentida, que derretia como lava pelos poros, enquanto os corpos pendiam
para os lados, juntos, no frêmito impossível de rodopiarem, tendo um precipício abaixo,
logo após o delírio interminável que explodiu, fazendo-se ouvir no horizonte.
12
e os corpos unidos eram um só instante repentino de prazer completo,
e tremiam, embalados pelos cantos longínquos de gaivotas esvoaçantes,
que deslizavam sobre navios pesqueiros, à espreita de peixes capturados,
voando numa coreografia imitada pelos corpos unidos, que buscavam a profundidade
do mar-alto, firmando-se sobre a maciez contínua e provocando sons delirantes,
perceptíveis a ouvidos nus, à medida em que avançavam rumo ao êxtase litorãneo.
13
as calçadas de areia levavam a lugares variados, como lojas de artesanato,
em que objetos indígenas misturavam-se a miniaturas de corujas, símbolo da sabedoria,
e havia algo como o fluxo incerto de vozes, sob uma ponte quase centenária,
e pinturas produzidas no calor do momento, ao passo em que uma boneca-humana,
sobre um estrado, movia-se em câmera lenta, enquanto a quilômetros, uma caricatura de bronze,
vestida com um hábito singular, realizava movimentos robóticos, num cadafalso.
14
e distraía pessoas com vasilhas, que esperavam pela vez de colher água potável,
tão rara nesses tempos de entresafra, em que um poço pela metade é procurado,
e um barril vale mais que petróleo e ouro, sugados da terra em regiões milenares;
e, enquanto a água escorria de torneiras dilatadas, algumas pessoas impacientes
procuravam preencher o vazio, girando as cabeças por enrtre os monumentos expostos,
homenagens em forma de escombros, que rompiam os limites da sensatez.
15
depois, a noite reservou uma estadia amena, no ritmo de ondas que atravessaram o ano,
chamuscadas por fogos e brindes, e saltos, e abraços, até o cansaço surgir antes do sol,
levando ao repouso suave, interrompido pelo momento de ir, subindo a serra arborizada
e preenchida, em parte, por túneis iluminados (com buzinas ensurdecedoras) que cobriam
estradas pulverizadas, e não adiantava querer desviar, porque, nas margens opostas,
o único caminho de volta era perfilado freneticamente por incertezas.
16
e, no céu noturno, não se via nada, além do líquido que caía em forma de arame farpado,
gotas finas e cortantes, como se um rio estivesse invertido, derramando as águas sobre a terra,
revolvendo e alagando tudo, numa rota brutal, impossível de ser descrita.
(Arte: Pintura abstrata de Tomie Ohtake)