segunda-feira, 28 de maio de 2007

IMAGENS RECORTADAS


Não havia nada, a não ser um facho de luz,
Onde seu sorriso formava poças de ternura.
Não sentia nada, a não ser seu olhar que produz
Um infinito brilho, onde a certeza figura.


Do meio do bosque improvável,
Uma fera com semblante de ave,
Com um coração ocupado, mas instável,
Saiu e voou, retirando de sua vida todo entrave.



Era dia ainda. O sol esfriava cada instante.
Antes que um sentimento perfurasse minhas incertezas,
Você, com o corpo úmido e inquietante,
Onde os desejos fluíam, como certas correntezas,



Respirou a vida, num beijo profundo
E quente. Seu coração, fervilhando,
Atingiu o que estava no fundo
De seu íntimo, borbulhando...


(Arte: "Sonho", de Salvador Dalí)

POEMA SURREALISTA


A janela aberta devorava

O vento da madrugada,

Que martelava como um trator,

As dores de parto da gazela nua.

E nua, a gazela passeava,

Cavalgando e construindo muros de árvores

Para proteger-se do lixo literário

Despejado nas esquinas do coração

Do país, do mundo.



(Arte: "O Navio", de Salvador Dalí)


AQUELA

(Para Claudia)

na lembrança
aquela que tinha os cabelos claros
como o amanhecer
aquela que sorria sorrisos envolventes
como o entardecer
aquela que tanto dizia
sem nem mesmo precisar dizer
a vejo descendo uma rua infinita
com o rosto radiante e sensível
quando lhe escrevi um poema
onde anunciei que estaríamos juntos




e hoje
aquela que tem os cabelos claros
como o anoitecer
aquela que sorri sorrisos envolventes
como o entardecer
aquela que tanto diz
sem nem mesmo precisar dizer
a vejo da mesma forma
ainda que diga suspirando
¨não sou mais aquela”
porque aquela é em você
a que foi e a que é são a mesma
juntas formam o que sempre existiu: o amor


(Arte: "Maternidade", de Joan Miró)


E GIRA


E gira cada ponteiro do relógio


E gira cada pensamento
cada desejo
cada sentimento
(quarto de despejo
catavento)
cada momento é assim:
vazio
cheio de
NADA


Sem nem mesmo a flor formada
pelo giro
pela força
pela vontade
pelo suspiro
pela poça
pela saudade


E gira cada olho seu
cada estrela do céu
cada barquinho de papel
cada noiva sem o véu
cada colméia sem mel
cada pedaço do meu ¨eu¨
que tanto entende o ¨seu¨


E gira a gíria
em todas as décadas
em todas as épocas


E gira gira gira
a manhã
a tarde todas com ou sem sol


E gira a noite sem sol
com lua
igual a
beleza que é sua


E gira ainda o sol
no meu rosto
que desgosto
que cheiro de formol


E gira o cheiro da água do chuveiro


E gira o travesseiro
No filme o taverneiro
diz ao conselheiro
que um certo seresteiro
beijou a princesa em frente ao canteiro
do jardim do rei
e por lei
a princesa só deve ser beijada
quando estiver casada


E gira gira gira o sol
quando você vestida como o dia
faz explodir toda a magia


E gira gira gira o sol


E gira o sol


É


Um gira


gira
gira
girassol girassol girassol


(Arte: "Os Girassóis", de Vincent Van Gogh)

ENTRE DUAS MANHÃS



entre duas manhãs
o sol posto repõe-se no repasto da noite
e um certo andarilho
desses que trazem da irrealidade o brilho
diz bom dia numa rua da noite
diz bom dia à noite
permanecendo com sorriso incerto
como se tudo pudesse ser desperto
e não houvesse olhar mudo nem nada recoberto



entre duas manhãs
o acalanto à criança recém-vinda
por aquela que cuida alimenta e
ainda muito mais
ainda muito mais faz
quando na gestação da madrugada
o coração é assustado pelo choro
e a luz apagada
cobre de pensamentos estridentes
o antes sono intranqüilo
(lá fora na árvore um esquilo
não
é o barulho do canto e salto de um grilo
no galho formado bem antes da mãe da criança
lá fora dos anos passados restaram
a árvore
o galho
o grilo
e imagens na lembrança)
o choro
tempestade quase sem fim
silencia
e a criança dorme
e o pai dorme
e aquela não



entre duas manhãs
um livro de poemas
letras palavras linhas símbolos
formata anseios devaneios entremeios
e
entre
meios
constrói-se com o arado revolvendo a terra
a poética
a dialética
a estética
com as sementes plantadas
colocadas recolocadas encontradas
sob a forma de textos
sobre assuntos diversos
alguns em versos
outros inversos
também imersos
na textura brancura
da folha
da bolha
na espessura escura
da rolha
da escolha
de como expressar a poesia
entre duas manhãs
quem tem visão não vê
tateia titubeia
não enxerga para fora
e com os pés descalços na areia
não sente o prazer que incendeia
quem não tem visão vê
passeia ceia
enxerga para dentro
e com os pés descalços na areia
sente o prazer que incendeia
e volta e meia
pisa na lua
pisa na duna
pisa na rua
pisa na escuna
navegando de óculos escuros
deslizando
caminhando
a passos largos
pela disposição
pela percepção
pela definição
pela contemplação



entre duas manhãs
próximo a você a noite escorria
como se o tempo sumisse
como se as horas derretessem
como se a incerteza explodisse
como se os instantes acontecessem
e o sentimento naquele completo diálogo
não fosse somente a amizade
mas o amor que emergia
e sensivelmente encobria
os sentidos
e o beijo profundo
longe de tudo
traduziu a cumplicidade
foi a concretização do amor
tendo como pano de fundo
o encontro a suavidade
que acaricia o coração e alegra
com espontaneidade
entre duas manhãs
os lábios unidos partilhavam o mesmo sentimento
dançavam embalados pelo calor do momento
enquanto o beijo alado
tão esperado
era a própria realização do amor
plenamente formado


(Arte: 'The Dutch Settlers, part II", de Jean-Michel Basquiat)

HÁ NA CUMPLICIDADE


(Para Claudia, poesia à primeira vista)



há na cumplicidade de sentir o calor de suas mãos inquietas,
uma suave tranqüilidade e a sensação de tocar na alvorada.
há na cumplicidade plena dos pensamentos da madrugada,
o anseio de apalpar vontades, tornando todas descobertas.



há na cumplicidade que iguala – fazendo de dois, um só –,
algo singular, enquanto por trás da espessa cortina que separa,
a névoa da solidão dá lugar ao sentimento que tanto silenciara,
e proporciona umidade onde, por muito tempo, houve pó,



e completa as ruínas antigas, adornadas por estátuas de areia,
sensíveis ao tempo e desfiguradas por tudo o que incendeia.
há na cumplicidade, a certeza de coexistir sem sucumbir à vaidade,
sem ter os corpos dilacerados por angústias, medos ou receios,
sem conter o amor, correspondido em toda sua profundidade,
sem alimentar o desespero e viver à mercê de devaneios,



sem jamais resistir ao sublime chamado da chama estridente,
que brota de brasas acesas – princípio de fogo intermitente –,
em que o tatalar de asas, faz surgir faíscas e, logo, fogo ardente.



(o que há dez anos era improvável, concretiza-se, de repente.)



há na cumplicidade, a percepção do contato incontrolável,
há na cumplicidade inequívoca, o sentimento inexplicável.
há na cumplicidade da intimidade, a presença acalentadora,
há na cumplicidade que amplia o horizonte, a força vindoura.

(Foto: "Claudia entre rochas vulcânicas, borboleta com asas de pedra", de Elson Teixeira Cardoso )

LIVRO DE VIAGEM

1


e no céu noturno, estrelas exasperadas,
em estado de poeira cósmica, enegreciam-se,
liquefeitas pela imperfeição humana,



formando figuras disformes, em poças serenizadas por uma fina chuva,
ao mesmo tempo em que cães cinzas ladravam pelas esquinas
despovoadas, repletas de ausência e ciprestes.



2


no trajeto, rodovias asfaltadas pela mais-valia da modernidade,
deslizavam freneticamente diante de olhos semicerrados,
em conjunto com ruas, ruelas e becos imprecisos, inexistentes,



rente a árvores secas e canaviais desintegrados pelo fogo,
rente a construções fantasmagóricas, ocupadas pelo passado,
rente ao escuro urbano (moldura para a diversidade).



3


viam-se incontáveis barracos apagados, espalhados pelo solo coletivo,
arremedos de casebres à maneira de palafitas (amanhecidas),
que permaneciam suspensos pela miséria secular,



flutuando inertes sobre valas de esgoto, elos de córregos nauseabundos,
borbulhantes de (do) cólera, banhando diuturnamente a (des) infância de crianças anêmicas,
reticentes à luz do sol, e distantes anos-luz da preocupação real de muitos.



4

houve a imprudência que quase cessou a jornada,
mas vozes ecoaram silenciosamente pelos prados concretos,
e a fumaça que sobreveio do cálice da termeridade,



irrompeu em algo simbólico, uma xícara de café improvável,
esboçada em gestos guturais, que germinaram na indignação
e constrangimento, pelo papel moeda ter que ser ofertado sob pressão.



5

a certa altura, um sono implacável subiu às têmporas,
a passos largos, seqüestrando a concentração
e provocando, por instantes infinitos, um coro de luzes,



tardiamente reluzindo sobre uma névoa espessa,
e atingindo o ápice do contato, em janelas entreabertas,
que deixavam à mostra o delírio de enxergar o rosto num espelho crepuscular.



6

houve o desmoronamento circunstancial, que retirou tetos e deixou vapores,
enquanto aumentava o ritmo de circundar canais, navegando silenciosamente
pelas águas turvas e geladas do mar de pedra da madrugada,



até que, no amparo da sensatez, pés descalços, em contato com o balanço esfuziante,
sorviam o sumo das areias das praias, aquietando-se no concerto de horas tranqüilas,
e afundando mariscos estilhaçados, encontrados entre objetos perdidos há tempos.



7

e de uma janela entreaberta era possível contemplar ruídos diferentes,
barulhos de animais na selva diminuta, à caça de presas,
e apitos de trens de carga, enferrujados pelas águas salgadas,



e vozes, e gritos, e buzinas pelas ruas, diante de ondas arrebentando nas praias,
como se as águas salinares, embrutecidas pelo lixo despejado,
fossem encobrir o lugar, até a muralha de árvores que mantinha-se firme.



8

não se ouvia machados e serras elétricas, apenas o adorno imprescindível
ao equilíbrio do meio ambiente, sem o qual, não haveria beleza natural,
pois os morros, mais altos que edifícios, ameaçavam ruir numa avalanche horrenda,



enterrando as tardes de bronze, em que plantas enroscavam-se nos tornozelos de mármore,
e, sob o sol, pássaros sem caule derretiam-se no calor corpóreo, como faíscas ao vento,
enquanto um formigueiro humano, longe da percepção, multiplicava-se a olhos nus.



9

e um cataclisma cedeu, exatamente no momento em que barras de ferro eram retorcidas,
e vários nós ásperos, desses que contêm o antídoto para o desespero da amnésia,
apertaram as nuvens grávidas de pingos sedentos, prestes a desembocarem,



o que ocorreu quando o mar regorgitou o óleo despejado por um cargueiro,
e caranguejos esbravejaram diante de marés de espuma, ávidos para respirarem,
já que estavam sufocados em redemoinhos dilatados por destroços e conservantes insípidos.



10

bicicletas enferrujadas, conduzidas por portuários madrugadores, consumiam avenidas,
devoravam anos e segundos, e desapareciam na aurora, levando a tempestade de delírios,
que podia ser contemplada do mirante sobre a montanha de ar, que, imaginariamente,



fazia acreditar que as ruas estreitas que desorientavam os caminhos, fossem dar numa ilha
espremida por corais incertos, quando, na verdade, levavam a uma bica centenária e a um
forte desprotegido, onde, no passado, foi quartel-general para soldados de papel.



11

e no quarto, as mãos entrelaçadas rompiam fronteiras e ramificavam-se pela geografia
do corpo feminino, ampliando os instantes contidos numa tarde chuvosa, e parecia
não haver nada que preocupasse, nada que corroesse ou fosse capaz de apagar



a sensação sentida, que derretia como lava pelos poros, enquanto os corpos pendiam
para os lados, juntos, no frêmito impossível de rodopiarem, tendo um precipício abaixo,
logo após o delírio interminável que explodiu, fazendo-se ouvir no horizonte.



12

e os corpos unidos eram um só instante repentino de prazer completo,
e tremiam, embalados pelos cantos longínquos de gaivotas esvoaçantes,
que deslizavam sobre navios pesqueiros, à espreita de peixes capturados,



voando numa coreografia imitada pelos corpos unidos, que buscavam a profundidade
do mar-alto, firmando-se sobre a maciez contínua e provocando sons delirantes,
perceptíveis a ouvidos nus, à medida em que avançavam rumo ao êxtase litorãneo.



13

as calçadas de areia levavam a lugares variados, como lojas de artesanato,
em que objetos indígenas misturavam-se a miniaturas de corujas, símbolo da sabedoria,
e havia algo como o fluxo incerto de vozes, sob uma ponte quase centenária,



e pinturas produzidas no calor do momento, ao passo em que uma boneca-humana,
sobre um estrado, movia-se em câmera lenta, enquanto a quilômetros, uma caricatura de bronze,
vestida com um hábito singular, realizava movimentos robóticos, num cadafalso.



14

e distraía pessoas com vasilhas, que esperavam pela vez de colher água potável,
tão rara nesses tempos de entresafra, em que um poço pela metade é procurado,
e um barril vale mais que petróleo e ouro, sugados da terra em regiões milenares;



e, enquanto a água escorria de torneiras dilatadas, algumas pessoas impacientes
procuravam preencher o vazio, girando as cabeças por enrtre os monumentos expostos,
homenagens em forma de escombros, que rompiam os limites da sensatez.



15

depois, a noite reservou uma estadia amena, no ritmo de ondas que atravessaram o ano,
chamuscadas por fogos e brindes, e saltos, e abraços, até o cansaço surgir antes do sol,
levando ao repouso suave, interrompido pelo momento de ir, subindo a serra arborizada



e preenchida, em parte, por túneis iluminados (com buzinas ensurdecedoras) que cobriam
estradas pulverizadas, e não adiantava querer desviar, porque, nas margens opostas,
o único caminho de volta era perfilado freneticamente por incertezas.



16

e, no céu noturno, não se via nada, além do líquido que caía em forma de arame farpado,
gotas finas e cortantes, como se um rio estivesse invertido, derramando as águas sobre a terra,
revolvendo e alagando tudo, numa rota brutal, impossível de ser descrita.




(Arte: Pintura abstrata de Tomie Ohtake)